A sessão pública 'Cultura e Futuro', realizada no passado dia 19 de Junho no Teatro São Luiz, reafirmou aquelas que consideramos serem ideias elementares para compreender o lugar da criação artística e da Cultura nas sociedades democráticas contemporâneas. Este documento de síntese pretende resumir as principais ideias expostas na sessão e apresentar um plano de trabalho e actividades que lhe dêem consequência.
Truísmos e falácias
Todos os intervenientes se preocuparam em desconstruir e rebater um conjunto de ideias hoje hegemónicas que, apesar de toda a sua desonestidade e fragilidade argumentativa, constituem a base de uma doutrina diametralmente oposta a qualquer ideia de serviço público de cultura. Torna-se por isso obrigatório nesta síntese atacar o problema pela raiz.
- A condição do artista "Os artistas não são parasitas, são construtores de desenvolvimento nacional com um potencial imenso por explorar", declarou Rui Vieira Nery, confrontando o discurso de redução do artista a uma figura socialmente indesejável, dependente do Estado e não produtivo. E acrescentou que a "ideia de que a criação artística é algo que se materializa [a partir] da pura vontade do artista é uma mentira que se instalou e que importa desmistificar". O governo incorre numa definição do trabalho artístico como algo de não profissional, à margem das actividades economicamente 'verdadeiras' e 'úteis'. Como bem realçou o musicólogo, "não é suposto um artista ter de passar fome para fazer arte. Génios sempre houve", mas não é assim que se constrói e mantém uma rede de criação artística [estruturada e com pólos] de excelência. Por outro lado, "a liberdade de criação não equivale ao deserto institucional". A ideia de que o Estado não se pode intrometer nas escolhas estéticas e programáticas dos criadores, uma ideia certa e defendida por todos, não tem qualquer relação nem justifica a actual estratégia de desresponsabilização governativa perante a rede pública de equipamentos culturais e perante os apoios à criação. Nas palavras de Catarina Martins, "ao Estado não cabe dizer o que é a cultura de um povo (...) mas cabe assegurar as condições de fruição e criação cultural."
-A dimensão económica Numa perspectiva económica, "esta estratégia entra em total contra-senso", considerou ainda Vieira Nery. Invocar a crise como pretexto para estrangular o investimento na Cultura é anular qualquer hipótese de sair da crise mas, sobretudo, o investimento na Cultura é, em termos macro-orçamentais, irrelevante. Qualquer corte na Cultura não adianta absolutamente nada para uma redução do défice orçamental ou da dívida pública. A insistência na frase 'não há dinheiro' não passa, por isso, de um pretexto para impor aquilo que é a convicção ideológica do actual governo: a cultura é um desperdício. António Pinto Ribeiro reforça o argumento: "a escolha não está entre investir na cultura ou aumentar o subsídio de desemprego (...) A escolha está, em primeiro lugar, em advogar por uma outra economia à escala europeia com consequências nacionais." João Canijo defendeu, por seu lado, que não há qualquer possibilidade de sustentar uma indústria de criação, mesmo com o intuito mais comercial, sem uma estrutura e políticas públicas que garantam economias de escala sustentáveis. Em Portugal, uma produção cinematográfica, para atingir os seus objectivos comerciais e ser independente de financiamento público, exigiria um mínimo de 800 mil espectadores nas salas de cinema, algo que, diz, "nunca aconteceu nem acontecerá".
É de política que falamos
A análise destes pontos deixa por isso claro que a actual situação de estado de excepção vivida pelo sector é uma escolha política, deliberada e consciente. Segundo as palavras de António Pinto Ribeiro, "a decisão da desvalorização da actividade artística não é financeira, ela é política e ideológica e é da responsabilidade do Senhor Primeiro Ministro." A condição de menoridade comparativa a que o sector da Cultura sempre se sujeitou politicamente é talvez uma das razões que permitem hoje a total ausência de responsabilização por parte da tutela. A estratégia não passa por medidas activas para o desmembramento do sector, mas sim pela recusa em qualquer comprometimento e acção. Nas palavras de Catarina Martins, "com um ano de Governo PSD/CDS tudo na cultura corre mal: a Rede Portuguesa de Museus está parada e os museus e monumentos sem pessoal, as bibliotecas estão sem orçamento para aquisições e mesmo sem bibliotecários, os teatros e equipamentos municipais de cultura em risco de fechar portas, estrangulados pela legislação sobre as empresas municipais e pela Lei dos Compromissos. O Alto Douro Vinhateiro está em vias de perder a classificação como Património da Humanidade. Portugal não teve representação oficial em Cannes ou Berlim. Na criação artística, este Governo não conseguiu cumprir uma única lei nem abrir um único concurso. Para cinema, teatro, dança, música, artes plásticas, o Governo fez de 2012 um ano zero."
-um problema de falta de futuro
O problema da empregabilidade das novas gerações foi realçado por António Capelo como a maior ameaça das novas gerações de profissionais da Cultura. Segundo o próprio, "ando a formar profissionais que não sei exactamente o que irão fazer no seu futuro." A indefinição da política cultural não permite por isso qualquer estruturação artística, nomeadamente da nova geração, obrigada a submeter-se a condições de emprego impossíveis de conciliar com um caminho profissional nas artes. Uma "alteração de paradigma radical", nas palavras de Luís Cunha, representante do CENA. Desenvolve-se assim um trabalho artístico na sua maioria sem qualquer tipo de apoio ou mesmo suporte público. O ator considera por isso que a atitude do "logo se verá" com que a SEC responde quando questionada sobre os concursos públicos de apoio à criação é, neste momento, "uma estratégia deliberada de desestruturar o sector". José Luís Ferreira afirmou por seu lado a necessidade imperiosa de " previsibilidade das relações do Estado com os agentes independentes", uma referência ao desrespeito sistemático da tutela pelos contratos estabelecidos com os criadores e teatros do país, que não encontra exemplo em nenhum dos outros sectores em que o Estado tem contratos de serviço público com parceiros privados.
-um problema de escala
A infra-estrutura de serviços de cultura no Portugal democrático foi sendo construída de forma frágil, com estratégias antagónicas e governos poucos esclarecidos. A rede de bibliotecas é hoje um pilar de democratização, de acesso ao conhecimento e impulso à criatividade. A rede de teatros, largamente desaproveitada e sem políticas coerentes de programação, não deixou de ser um elemento fulcral no acesso das populações à diversidade artística. A expansão do ensino artístico, que ainda não cobre todo o território, alargou o número de alunos e públicos de cultura. A rede de museus, embora manca por falta de investimento e políticas progressistas, é uma instituição central no aparelho dos serviços públicos. É pouco o que existe, mas é alguma coisa. Subsiste no entanto um problema estratégico de gestão transversal de toda a infra-estrutura, um problema cuja solução exige uma política coerente e, segundo Inês de Medeiros, uma “perspectiva geográfica do território” que responda a um problema de escassa regulamentação e excessiva "pessoalização" na gestão dos equipamentos públicos. Por outro lado, José Luís Ferreira sublinhou o cruzamento de desinvestimentos e cortes a vários níveis que começou já a paralizar um sector por natureza complexo e inter-dependente, que obriga a uma resposta coordenada e coerente. Raquel Henriques da Silva realçou a ignorância e autoritarismo da tutela para com os museus e património, revelado pela recusa do governo em reunir e ouvir o Conselho Nacional de Cultura desde que assumiu funções e a "total continuidade de más políticas dos últimos governos" que fez recuar a política de gestão do património e dos museus para um paradigma anterior ao 25 de Abril, uma referência à entrega dos museus à gestão das Direcções Regionais de Cultura, estruturas que considera “sem capacidade técnica” e que não corresponde a qualquer descentralização verdadeira já que estão directamente dependentes do Estado central.
-uma política cultural de emergência
António Pinto Ribeiro considera ser "imperioso que um secretário de estado seja substituído por um Ministério da Cultura que devolva a dignidade ao universo cultural. Que o Ministério da Cultura tenha um gabinete capacitado tecnicamente e com o mínimo de meios para a execução de uma política cultural de emergência para os próximo três anos». Considerou ainda crer «poder afirmar que muitos dos profissionais do sector cultural se comprometem a estudar meios e modelos que viabilizem novos mecanismos de financiamento aos sectores artísticos que, pela sua natureza minoritária ou pela sua vocação internacional, exijam meios que só o Estado pode considerar." -a televisão pública, a lei do cinema e a diversidade audiovisual A defesa da televisão pública, entendida como local por excelência de intersecção de produção e acesso à pluralidade estética audiovisual, foi o ponto de confluência de Nuno Artur Silva e Inês de Medeiros. Segundo a própria ainda ninguém conseguiu explicar "por quê e para quê" privatizar a RTP. Nuno Artur Silva adianta que "não se provou qualquer vantagem financeira nesta operação" e que o assunto se tornou "uma obstinação pessoal do ministro Miguel Relvas que não foi explicada." Deixou por isso três propostas abrangentes a todo o conceito de televisão pública: 1-É essencial que a RTP seja um conjunto de canais que, num mundo contemporâneo onde os conteúdos são vistos cada vez mais separadamente quando e como quisermos, permitam o acesso diferenciado à pluralidade de conteúdos. Hoje, montar um canal de televisão é uma operação relativamente barata, logo a RTP deve ter a liberdade de montar vários canais pois não há razões económicas que o impeçam, pelo contrário. 2-A Televisão Digital Terrestre possibilita que a televisão chegue às pessoas com oito canais de televisão abertos. Neste momento existem apenas quatro. Está-se a privar às pessoas o acesso a aquilo que é público. Todos os canais da RTP devem por isso ficar disponíveis de forma grátis na TDT. Não faz sentido que os portugueses paguem duas vezes por um canal público da RTP, primeiro através dos impostos, depois pela assinatura de serviço por cabo (através do qual se tem acesso a RTP memória). A RTP deve ser constituída por: um canal generalista; um canal alternativo; um canal memória (entendido como algo que faça o diálogo da memória com o presente); e um canal infanto-juvenil para as novas gerações terem acesso padrão a produção portuguesa dedicada; Isto libertaria os canais privados para valorizar a sua presença no serviço de televisão por cabo. 3-É crucial que a nova lei do cinema seja aprovada; é decisivo que haja dinheiro para fazer filmes com liberdade e é decisivo que se invista na televisão e não só no cinema; ou seja, é obviamente importante que se mantenha o apoio à produção de cinema português mas o que não faz sentido é deixar que se reduza a televisão portuguesa a um padrão de telenovelas latino-americanas por muito importante que sejam para manter uma indústria e postos de trabalho.
Proposta de Grupos de Trabalho
Os promotores da iniciativa 'Cultura e Futuro' consideram por isso prioritários e submetem à consideração de todos a constituição de três grupos de trabalho que, não sendo exaustivos a todos os problemas do sector, representam os assuntos onde mais incisivamente se pode e devem afirmar posições concretas que obriguem a respostas claras por parte da tutela.
- Governo e autarquias: co-responsáveis no desempenho de políticas culturais
A articulação dos investimentos entre o Estado central e o nível municipal em Cultura é uma condição base para qualquer recuperação do dinamismo cultural nacional. As redes de cine-teatros e outros equipamentos têm que conhecer finalmente uma co-responsabilização que viabilize o seu funcionamento e assegure regras de gestão. A lei dos compromissos está a implicar uma redução drástica de todo o investimento local. As regras a que estarão sujeitas num futuro próximo as Empresas Municipais implicará o encerramento de virtualmente todas as que têm a seu cargo a gestão de equipamentos culturais, sem que se vislumbre uma alternativa que não seja o regresso a formas arcaicas de administração. Torna-se por isso necessária uma reflexão aprofundada e geograficamente diversificada que permita uma resposta coerente.
-financiamentos para a cultura: orçamentos públicos, mecenato, fundos europeus
A economia da criação artística e dos processos culturais implica um financiamento importante cujos limiares mínimos estão longe de ser assegurados em Portugal. O Orçamento de Estado para a cultura reduz-se substancialmente de ano para ano. As dotações municipais estão em contracção violenta. As verbas do QREN foram investidas sobretudo no financiamento daquilo que deviam ser operações correntes, como as programações em rede, ou em grandes acontecimentos cujo impacto estratégico e de longo prazo não parece acautelado. A Lei do Mecenato tende a privilegiar o Estado e necessita de uma reforma profunda. O já anunciado programa Creative Europe, o quadro europeu de fundos para a cultura entre 2015-2022, entrou este ano em fase de preparação. Num contexto de crise é da maior relevância uma atitude pró-activa por parte da tutela que congregue os agentes culturais em candidaturas bem estruturadas a este novo quadro de apoio. A total renúncia do governo actual em agir nesse sentido explica-se pelas necessárias contrapartidas nacionais que implicam investimento público. O sector cultural é no entanto um dos poucos sectores onde o retorno fiscal de investimento público ultrapassa largamente o investimento realizado. Importa por isso realizar e publicar um estudo sobre o processo económico do investimento público na cultura aplicado ao caso português e fundamentar a exigência de políticas activas nos quadros local, regional, nacional e europeu para a cultura.
- cadastro da crise
Não existe neste momento qualquer registo estatístico dos efeitos da crise sobre os agentes culturais em toda a sua diversidade. Dos museus às bibliotecas, dos teatros nacionais aos teatros municipais, dos programadores aos criadores, nenhuns dados permitem conhecer com um mínimo de precisão as consequências da crise sobre o sector. Sabemos no entanto que há um refluxo generalizado de todas as estruturas, com despedimentos e precarização, empréstimos e endividamento sem solução, programas cancelados e fundos europeus desaproveitados por incumprimento da tutela. Torna-se por isso necessário e da maior relevância política para a defesa do sector construir um quadro mínimo do estado da Cultura no país. Propõe-se construir um registo voluntário da actividade do sector que reúna os seguintes dados elementares relativos ao biénio 2011/2012: número de actividades propostas e efectivamente realizadas; variação do número de colaboradores da estrutura (novas contratações; despedimentos ou passagem de contratos estáveis a colaborações pontuais e vice-versa); variação do financiamento disponível (público ou privado); número de encomendas (previstas, contratualizadas e/ou canceladas).
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