O património cultural e o acesso à
criação artística contemporânea constituem valores de civilização inerentes às
democracias modernas. Os direitos à identidade e à diversidade cultural, à
participação na vida cultural, à livre criação e fruição artísticas, à
cooperação cultural internacional, são direitos culturais reconhecidos pela
UNESCO, que investe os Estados na responsabilidade de construir políticas
públicas que assegurem o seu pleno exercício. No Portugal democrático, a
efetivação dos direitos culturais constitui uma tarefa fundamental do Estado, a
par dos direitos económicos e sociais e da promoção do bem-estar, da qualidade
de vida da população e da igualdade real entre portugueses, conforme estipulado
na Constituição da República.
Portugal está hoje equipado de museus,
bibliotecas, arquivos, teatros, cineteatros, orquestras, património histórico,
material e imaterial, bem como de uma rede de artistas, criadores,
programadores, técnicos e produtores, complexa e de reconhecida excelência
nacional e internacional. No entanto, todo este edifício apresenta enormes
fragilidades. Os investimentos em infraestruturas e em formação não foram
acompanhados por uma estruturação mínima da partilha de encargos e
responsabilidades, da definição de cartas estratégicas e de regras de gestão
independentes dos poderes imediatos.
Neste momento, como resultado de uma
governação abertamente hostil à ideia de serviços públicos de cultura e que usa
a crise como alibi, assistimos a uma rápida e progressiva desprofissionalização
no setor cultural, ao fechamento das agendas culturais e à desagregação da
identidade social dos equipamentos públicos. O desinvestimento do Estado, nas
diversas dimensões das políticas públicas para a cultura, nega, efetivamente, o
acesso dos cidadãos à cultura e desbarata o investimento feito nesta área no
Portugal democrático.
O acesso à cultura, na dupla dimensão
da criação e fruição, é essencial ao desenvolvimento. O Estado não pode iludir
as suas responsabilidades na promoção do acesso ao património cultural, ao
conhecimento, à qualificação, à participação cidadã. E não pode também
desresponsabilizar-se pelo acesso à criação artística, que constrói o
património cultural do futuro e é o instrumento de construção das narrativas próprias,
das identidades múltiplas da nossa vida coletiva. Um povo sem acesso ao
património cultural e à criação artística é um povo colonizado, sem os
instrumentos básicos para se conhecer e, portanto, formular a sua
singularidade.
Ao contrário daquilo que enuncia o
discurso corrente, é precisamente nos momentos de crise, como o que vivemos,
que as políticas públicas para a Cultura ganham renovada atualidade. A Cultura
é um instrumento fundamental de construção de uma qualquer ideia de futuro,
quer do ponto de vista simbólico, enquanto conjunto de valores e práticas que
têm como referência a identidade e a diversidade cultural dos povos e que
compatibiliza modernização e desenvolvimento humano, quer do ponto de vista
económico. A produção cultural dinamiza uma série de cadeias produtivas que lhe
permitem multiplicar o investimento público como nenhum outro setor. E é ainda
um elemento estratégico da economia do conhecimento.
O discurso económico, instituído e
incentivado pela tutela, tem procurado submeter a cultura e a criação artística
a conceitos redutores que tendem para uma hegemonização da oferta concentrada
em grandes produtores e distribuidores de conteúdos. É sistematicamente
esquecido que a economia do conhecimento, baseada na criatividade, é bem-sucedida
apenas quando construída sobre uma forte e complexa rede de infraestruturas e
agentes culturais que só políticas públicas podem garantir. O paradigma
norte-europeu, tido por exemplo de sucesso, acontece graças a um adquirido
fundamental e politicamente consensual de investimento público na cultura e na
criação contemporânea, que permitiu às indústrias culturais e criativas uma
aposta arriscada na inovação, com fracassos e sucessos.
Torna-se pois imperativo que a densa e complexa rede pública dos serviços
de cultura se qualifique no imediato e se torne operativa, de modo a cumprir o
espírito da Constituição onde o Estado Português se obriga, em colaboração com
todos os agentes culturais, a incentivar e a assegurar o acesso de todos os
cidadãos aos meios e instrumentos de ação cultural, bem como a corrigir as
assimetrias existentes no País e a articular a política cultural e as demais
políticas setoriais. É necessário um novo paradigma de gestão desta rede
complexa de equipamentos e agentes culturais, cuja concretização exige
responsabilidade governativa real e compromisso orçamental, onde a justiça da
partilha e a ética da responsabilidade presidam às tomadas de decisão. O património cultural e a
criação artística contemporânea constituem
parte do melhor que existe na representação externa da imagem de Portugal. Urge
viabilizar a internacionalização desta materialidade e deste imaginário, apoiar a produção contemporânea e, sobretudo, viabilizar aos
cidadãos portugueses o usufruto do seu capital simbólico e cultural.
Os subscritores deste documento afirmam a necessidade de um compromisso
alargado em torno de uma ideia estratégica de cultura e de relação com a
criação artística, que agregue as forças políticas, mas, sobretudo, os cidadãos
enquanto primeiros destinatários de toda a atividade artística e cultural.
Este compromisso não pode deixar de incluir uma dimensão orçamental –
negligenciável no cumprimento das metas de redução do défice, dada a dimensão
quase nula que assume no presente – que deverá passar pela inclusão de
programas específicos para a cultura no plano de investimentos que resultará da
reprogramação do QREN.
Deverá, no entanto, transcender essa dimensão orçamental, conferindo
prioridade à articulação de responsabilidades entre o Estado central e as
Autarquias, à enunciação de prioridades no restabelecimento de um tecido
criativo com um mínimo de escala e de capacidade de desenvolvimento de
projetos, à definição clara de regras de gestão independente da rede pública de
serviços de cultura, ancoradas numa estabilidade que permita o desenvolvimento
de planos de ação plurianuais e, finalmente, à normalização das relações do
Estado com os agentes independentes.
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